sexta-feira, 20 de março de 2015

A Saúde Pública brasileira nasceu graças à varíola

Bonde virado na praça da República
durante a Revolta da Vacina, no
Rio de Janeiro, em 1904:
obrigatoriedade da imunização
causou rebelião popular na cidade
Estudar História nos ajuda a compreender o presente, parece claro, e tem uma vantagem suplementar e extremamente importante: aponta novas possibilidades para o futuro e, no fim das contas, pode evitar que cometamos erros já cometidos no passado.

Estudar a História da Saúde é condição indispensável para quem trabalha na área e, especificamente, fundamental para nós, que trabalhamos no Sistema Único de Saúde, o SUS, estejamos diretamente na assistência ou em função de gestão ou administração.

O que aprendemos, observando a História da Saúde Pública no Brasil, é que houve uma clara evolução sobre o ponto de vista da assistência, de sua abrangência e qualidade. Até 1987, por exemplo, não havia acesso universal à assistência no País. Somente com a criação do SUDS (Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde), o princípio da Universalidade passou a ser adotado pela Saúde Pública brasileira. Esse foi um ganho inegável que o tempo trouxe de presente para a população. O tempo e os profissionais de saúde do Brasil, que se uniram em torno da bandeira da Reforma Sanitária, realizaram a 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986, e criaram o SUDS e o SUS.

Mas, observando a mesma História, também se podem notar alguns vícios que acompanharam (ou acompanham) a gestão do Sistema de Saúde durante o tempo.

Tomemos um desses vícios, manifesto no episódio da “Revolta da Vacina”, ocorrido na Capital Federal brasileira no início do século XX, o Rio de Janeiro. Para melhor conhecimento desse acontecimento histórico, recomendamos a leitura do texto “Dossiê História & Saúde: com a varíola, nasce a saúde pública”, de Arlene A. B. Gazêta, publicado originalmente na revista História Viva e reproduzido pela revista “História, Ciências, Saúde — Manguinhos”, periódico trimestral da Casa de Oswaldo Cruz, unidade da Fundação Oswaldo Cruz dedicada à pesquisa, documentação e divulgação científica em história das ciências e da saúde. Acesse no link http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/dossie-historia-saude-com-a-variola-nasce-a-saude-publica/.

No texto, é possível perceber que as intenções do Estado eram boas, mas, na prática, certamente eram daquelas que acabam fatalmente no inferno. A vacinação compulsória contra a varíola fora instituída em 1837, mas jamais, até o início do século XX tinha sido operacionalizada. 

Havia resistência da população à vacinação obrigatória, como ficou claro na Revolta da Vacina, mas antes disso, havia a ineficiência do Estado em fazer cumprir a legislação que visava a proteção da saúde da população e, logo quando se pôde perceber que a epidemia perdia força, também parecem ter perdido forças as boas intenções estatais.  

Segundo a autora, 
A década de 1920 marca um forte decréscimo na incidência de novos casos, com diminuição da gravidade e da capacidade de transmissão. A maior aceitação da vacinação e a consequente diminuição dos casos levaram o Estado brasileiro a conferir valor limitado à doença, que deveria ser combatida pela ação rotineira da vacinação.
Somente em 1904, com Oswaldo Cruz, se teve coragem para unir a vontade política de combater a varíola ao enfrentamento às resistências da população. O sofrimento e as vidas que a leniência estatal causaram poderiam ter sido evitadas.

Cabe lembrar que a Varíola, também conhecida como “Bexiga” matou mais de 500 milhões de pessoas durante os séculos XVIII, XIX e XX. Causa febre, erupções, principalmente na garganta, boca e rosto, com pústulas que podem deixar cicatrizes no corpo, constituindo um estigma. Segundo a OMS, a doença está erradicada desde 1980, após ser feita campanha de vacinação em massa (1).

Abaixo, após a nota de referência, o texto.

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Nota 
(1) Há registros de ocorrência da varíola há mais de 3000 anos e conta-se que o faraó Ramsés II, a rainha Maria II da Inglaterra e o rei Luís XV da França contraíram a doença.

A primeira vacina produzida foi exatamente a contra a varíola, ainda no século XVIII, e o termo quer dizer, em latim, "o que diz respeito à vaca“ (inoculava-se varíola bovina e se prevenia a humana). 
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Dossiê História & Saúde: com a varíola, nasce a saúde pública

A história da saúde pública no Brasil está intimamente relacionada ao papel social e político que a varíola desempenhou na estruturação e orientação das políticas de Estado. A importância da enfermidade e os esforços para o seu combate contribuíram para criar um grande e importante capítulo dessa trajetória. A varíola foi introduzida no Brasil pelos “descobridores” europeus. Com o processo de colonização, a doença foi se disseminando. A primeira referência foi feita por José de Anchieta, em 1561, e a primeira epidemia registrada data de 1563. A vacina chegou ao Brasil em 1804.

No período colonial, inexistiam ações de saúde pública para o combate à doença, mas, a chegada da corte ao Brasil, em 1808, propiciou importantes mudanças nas instâncias sociopolíticas, econômicas e sanitárias do país. O Rio de Janeiro, sede do Império português e principal porto do país, tornou-se centro de intervenções sanitárias. Ainda naquele ano, foi criada a primeira instância voltada para a saúde pública no Brasil, a Provedoria-Mor de Saúde, responsável pela salubridade da corte e pela fiscalização dos navios. Pela relevância que a varíola adquiria, D. João criou a Junta Vacínica da Corte, no ano de 1811, responsável pela vacinação jenneriana (base da imunização atual, desenvolvida por Edward Jenner, o “pai” da imunologia).

Após a Independência, os serviços de saúde passaram a ser da competência das câmaras municipais – atendendo à proposta de descentralização do poder – que, em conjunto com as iniciativas particulares, estimularam a criação de instituições locais para o controle da varíola.

A obrigatoriedade da vacina foi, pela primeira vez, estabelecida no município do Rio de Janeiro, em 1832, pelo Código de Posturas. A não vacinação se tornou passível de multa. Em 1846, foi criado o Instituto Vacínico do Império, órgão central que atuava nas localidades e era responsável pela vacinação na corte. Também foi estabelecida a obrigatoriedade da vacinação em crianças de até 3 meses e em grupos determinados, exigindo-se o atestado de vacinação para a admissão em algumas instituições.

Em meados do século XIX, o crescimento dos processos epidêmicos (varíola, febre amarela, tuberculose, por exemplo) levou o governo imperial a centralizar as poucas ações de saúde pública existentes no país na Junta de Higiene, criada em 1849. Inicialmente proposta para o controle da febre amarela, ela ampliou suas atividades, passando, em 1851, a denominar-se Junta Central de Higiene Pública. Porém tais medidas não mudaram o quadro da varíola no país, gerando um questionamento da eficiência da vacina. Com a criação da Inspetoria Geral de Higiene, em 1886, a vacinação antivariólica ficou sob a responsabilidade desse órgão e das inspetorias nas províncias.

Mesmo com a introdução da vacinação braço a braço, em 1804, e com o uso da vacina produzida em vitelos (pele de bezerros), desde 1887, a doença continuava a produzir epidemias no século XIX. Naquele ano, a vacina animal, mais eficiente do que a vacina  jenneriana, chegou ao Brasil, e sua produção e distribuição foi iniciativa do médico Pedro Affonso Franco, que estruturou um serviço de vacinação na Santa Casa de Misericórdia.

O desenvolvimento urbano das capitais, a ocorrência de epidemias e a preocupação com a manutenção da vinda de imigrantes para a agricultura cafeeira determinaram, em 1886, a “Reforma Mármore”, que instituiu o Conselho Superior de Saúde Pública, formado pela Inspetoria Geral de Higiene e pela Inspetoria de Saúde dos Portos.

Com a República, a saúde pública seria alvo de uma reforma que daria origem à Diretoria Geral de Saúde Pública (DGSP), criada em 1896 com o objetivo de melhorar os serviços de saúde na capital e nos portos, locais centrais para a obtenção de mão de obra e exportação de produtos agrícolas.

O combate à varíola, no final do Império, dependia da vacina jenneriana. Entretanto, no início da República, em 1892, foi criado um instituto exclusivamente voltado para a produção da vacina antivariólica, o Instituto Vacínico Municipal, que, até a década de 1920, seguiria atuando.

Ainda que o uso da vacina de forma compulsória estivesse instituído desde 1837, as leis não eram cumpridas, fosse pela inexistência de vacina suficiente para toda a população ou pela resistência ao produto. Nos primeiros anos do século XX, a ampliação da vacinação antivariólica fez parte de uma série de medidas de saúde pública no contexto de transformações do Rio de Janeiro. A remoção de cortiços, a drenagem dos mangues e a canalização dos esgotos foram algumas delas. Em março de 1903, em meio às medidas postas em marcha pelo presidente Rodrigues Alves, o médico cientista Oswaldo Cruz foi indicado para a chefia dos serviços sanitários da República. Seus principais alvos eram a febre amarela, a varíola e a peste bubônica – doenças que surgiam de forma epidêmica a cada ano, causando milhares de mortos, principalmente entre os imigrantes.

Depois de ter posto em prática medidas inovadoras contra a febre amarela, Oswaldo Cruz se voltou para a varíola, propondo a reafirmação da obrigatoriedade da vacina. Naquele momento, a questão era controversa, pois não existia consenso médico sobre a eficácia do método. Ademais, o projeto foi duramente criticado pelos afiliados ao “Apostolado Positivista”, que discordavam do caráter coercitivo da proposta, apontado como cerceamento do direito individual. Em virtude da grita geral, a obrigatoriedade foi suprimida da redação final do projeto. No ano seguinte, o surgimento de novos surtos fez com que uma nova proposta, visando à obrigatoriedade da vacinação e revacinação, fosse aprovada. Na regulamentação, foram prescritas multas aos rebeldes e a exigência do atestado de vacinação para matrículas nas escolas, empregos públicos, casamentos, viagens e outras situações. Em novembro de 1904, o regulamento se tornou público, causando uma intensa agitação que tomou as ruas do centro do Rio, incentivada pelo Centro das Classes Operárias, pelo Apostolado Positivista e pela Liga Contra a Vacinação Obrigatória.

Misto de rebelião popular com tentativa de golpe, o movimento reuniu monarquistas, líderes operários e oficiais do exército. Em 10 de novembro, começaram as agitações. Rapidamente, as manifestações nas praças do centro se transformaram em brigas com a polícia e em quebra-quebras. Um grupo de revoltosos entrincheirou-se no bairro da Saúde. Em 15 de novembro, uma revolta planejada por oficiais do exército agravou o caos em que já se encontrava a cidade. O confronto foi tão forte que o governo se viu impedido de retornar à questão da vacina obrigatória. A revolta deixou um saldo de muitos mortos e feridos, e centenas de revoltosos foram enviados para o Acre. A resistência à vacina propiciou o surgimento de novas epidemias nos anos posteriores.

Na segunda metade da década de 1910, os problemas deixados pela Primeira Guerra Mundial e pelo efeito devastador da pandemia da gripe espanhola, de 1918, colaboraram para que a saúde pública passasse a ocupar lugar de destaque nos debates. Esse período foi marcado por um pensamento nacionalista que passou a ver o abandono e as precárias condições de saúde das regiões interioranas como principais causas dos problemas da nação. Iniciada como uma campanha contra as verminoses e a malária, a luta pelo saneamento rural acabou por legar ao país a criação do primeiro órgão centralizado e permanente de saúde, o Departamento Nacional de Saúde (DNSP), criado em 1919.

O seu primeiro diretor foi o médico, cientista e diretor do Instituto Oswaldo Cruz, Carlos Chagas. No campo do combate às grandes epidemias, o órgão passou a se responsabilizar pela produção de soros, vacinas e outros medicamentos. Nesse momento, a principal medida, além da obrigatoriedade da vacinação, foi a transferência da produção da vacina no Rio de Janeiro, do Instituto Vacínico, para o Instituto Oswaldo Cruz.

A década de 1920 marca um forte decréscimo na incidência de novos casos, com diminuição da gravidade e da capacidade de transmissão. A maior aceitação da vacinação e a consequente diminuição dos casos levaram o Estado brasileiro a conferir valor limitado à doença, que deveria ser combatida pela ação rotineira da vacinação.

O final da década de 1920 foi um período de profundas mudanças no cenário nacional, culminando, em 1930, com a ascensão de Getúlio Vargas à presidência. Nos anos seguintes, a saúde se transformou, passando a englobar interesses de diversos grupos, se aproximando da proteção social de forma que marca o setor no país até hoje. Nesse período, foi canalizado um projeto de construção nacional voltado para a valorização do trabalho e do operariado urbano e, no âmbito geral, para a integração nacional. Ainda em 1930, foi criado o Ministério da Educação e Saúde Pública (Mesp), que se dividia em dois setores: o Departamento Nacional de Educação e o Departamento Nacional de Saúde.

* Arlene A.B. Gazêta é doutora em História das ciências e da saúde pela Casa de Oswaldo Cruz-Fiocruz

Leia este artigo na íntegra na História Viva 134. 

Leia em HCSM:

‘Alastrim, varíola é?’artigo de Luiz Antonio Teixeira. v.7, n.1, 2000.

artigo de Tania Maria Fernandes. v.11 (suplemento 1), 2004.

A epidemia de varíola e o medo da vacina em Goiásartigo de Eliézer Cardoso de Oliveira. v.20, n.3, 2003.


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