sexta-feira, 13 de março de 2015

A Família Real chega e a Saúde Pública brasileira sai da pré-história

A última postagem, "Regulação, limpeza e exclusão: a saúde no Brasil Colônia", tratou do início da história da Saúde Pública brasileira no período colonial, se é que se pode falar em Saúde Pública no caso. O título resume as ações, naquele momento: 

  • A Fisicatura regulava, ou seja, dizia o que se podia ou não fazer e quem podia fazer; legislava, criava normas, fiscalizava e, além disso, tinha poder para punir curandeiros indígenas, negros ou mesmo jesuítas. 
  • O Poder Público Municipal (PPM) tinha que cuidar da limpeza e, principalmente, dos miasmas, além de regular a entrada de pessoas e produtos nos portos. Estava a cargo do PPM fazer cumprir as Ordenações Filipinas e cuidar dos miasmas, para evitar males e contágios. 
  • Basicamente, as Santas Casas cuidavam dos doentes, mas os tratamentos eram praticamente os mesmos para todas as doenças, num repertório limitado de procedimentos que incluíam, fundamentalmente, a sangria e a purga (1)

O texto terminou com o seguinte parágrafo, titulado com a frase “Chega a família real e a situação começa a mudar”:
A vinda da família real ao Brasil (1808) criou a necessidade da organização de uma estrutura sanitária mínima, capaz de dar suporte à estrutura de poder que se instalava na cidade do Rio de Janeiro, trazendo mais gente e mais responsabilidades para a localidade. Ainda que de forma incipiente, as intervenções estatais na área da saúde se descolam paulatinamente da ação direta sobre o doente e passam a focar mais a saúde, ou a preocupação em garantir a saúde dos sãos e prevenir doenças. Tanto foi assim que, em 1846, foi fundado o Instituto Vacínico do Império.
Vamos, então, retomar nossa conversa deste período histórico, já pincelado na postagem “Os primeiros passos da Saúde no Brasil”, de 25 de fevereiro. 



Os leprosários forneciam o modelo
clássico de lidar com os doentes:
a exclusão com a caridade contida
na boa iniciativa de minorar o
sofrimento da pessoa condenada
pela doença, qualquer que fosse
Ventos da mudança
Como já sabemos, a corte chegou ao litoral baiano no dia 22 de janeiro de 1808, mas só pisou a terra brasileira dois dias depois, na cidade de Salvador, a primeira capital brasileira (2). Pode-se imaginar que, em parte, a família real precisou inicialmente se acostumar ao clima quente, notadamente pelo contraste existente entre o clima de Portugal naquela época do ano e o do Brasil, principalmente na região nordeste. 

Segundo informações já transmitidas aqui no blog, tudo indica que parte dos navios que traziam a corte e todo o seu séquito tiveram que aportar em Salvador por conta de uma tormenta. Aliás, a história do Brasil registra duas tempestades que levaram os portugueses à Bahia: no descobrimento e na chegada da Família Real. 

A chegada de dona Maria, que o vulgo chamava de “A Louca”, e de dom João VI, seu filho e Príncipe Regente de Portugal, não trouxe, em si, nenhuma grande revolução para a saúde brasileira. Houve, no entanto, mudanças perceptíveis. Afinal, a situação da colônia em Saúde Pública era próxima de zero e, a partir da vinda dos nobres, passou a ganhar alguma atenção. 

Para começar, a resistência dos médicos portugueses em vir para o Brasil arrefeceu, é claro. A corte estava na colônia, que fora alçada à condição de Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves em 1815, o que significava que havia bons ventos em direção ao novo reino (3)

Entre outras coisas, passava a haver melhor acesso aos medicamentos e, assim, melhores condições de trabalho para os “físicos” e “cirurgiões-barbeiros” e os demais curandeiros, que eram muitos no Brasil colonial (4)

Não esqueçamos que, além do decreto de criação do cargo de Físico-Mor do Reino, Estados e Domínios Ultramarinos, assinado logo após a chegada, em 1809, no dia 28 de julho, foi assinado o Decreto de criação a Provedoria da Saúde. 

Apesar dos avanços no campo da saúde, oferecendo à população um mínimo de proteção e de ações de recuperação da saúde, ainda que limitadas, a situação era ainda bastante pautada pela falta de organização e planejamento. E, quando não há planejamento, a tendência do Poder Público, ainda mais no Setor Saúde, é se focar em ações pontuais, isoladas, que servem para resolver ou tentar resolver problemas localizados, sem dar atenção, no fim das contas, às causalidades gerais que os motivam. Era exatamente isso que acontecia no Brasil. No entanto, tudo indica que essa situação de ações pontuais foi modificada sob a pressão das graves epidemias, que não distinguiam entre ricos e pobres, plebeus ou nobres, para se alastrar. 



O transporte de seres humanos
escravizados era feito sem
qualquer cuidado: quase todos
morriam durante a viagem e os
navios que os transportavam
eram conhecidos como "tumbas
flutuantes", os "tumbeiros"
Investir na saúde para salvar a economia
A tarefa de melhor planejar as ações, de modo que se pudesse proteger melhor a saúde dos brasileiros foi, inicialmente, tarefa da Fisicatura, do poder municipal e das Santas Casas, mas foi, logo após a chegada da realeza, assumida pela Provedoria de Saúde, como órgão central a coordenar o conjunto. Isso representava uma maior demanda de medicalização da sociedade, que, como vimos em postagem anterior, era já há tempo uma solicitação dos colonos, mas que só naquele momento, com a rainha e o príncipe regente presentes, ganhava atenção do poder público.

O discurso da importância da saúde do cidadão para trabalhar e defender o reino era a tônica e havia que se investir no Reino bem mais do que na colônia (5)

Economicamente, a situação de baixa assistência à saúde causava transtornos e tornava a situação mais instável do que o desejado. Havia alta mortalidade, principalmente entre os escravizados, sendo que em alguns momentos a natalidade era menor do que a mortalidade entre eles. 

Isso, na conjuntura interna. Na externa, durante o século XIX, os portos brasileiros enfrentavam problemas para receber cargas, pois muitas empresas de navegação se recusavam a aportar no Brasil, o que trazia severos prejuízos no comércio internacional. Esses problemas ligados à economia foram preponderantes para que políticas de saúde pública começassem a ser pensadas, planejadas e implementadas. 

Foram criadas as escolas de Medicina, o que trouxe mais qualidade e também mais pretexto para o controle dos curandeiros: sem título acadêmico, ninguém poderia curar, partejar ou ter botica. 

Isso tudo não impedia que as epidemias se apresentasse e se alastrassem sem qualquer piedade em relação às suas vítimas. A varíola, febre amarela, febre tifoide, sarampo e outros males ceivavam vidas e alertavam ao Poder Público que era preciso fazer mais do que estava sendo feito. 

Na próxima postagem...
... continuamos a nossa história, voltaremos a falar da instituição da imunização compulsória das crianças contra a varíola, já citada no texto “Os primeiros passos da Saúde no Brasil”, bem como do “Túmulo dos Estrangeiros”, apelido da Capital Federal brasileira, a cidade do Rio de Janeiro, durante o século XIX e início do XX, e sobre a reforma sanitária da cidade, promovida pela parceria entre Paulo de Frontin e Oswaldo Cruz, os homens que receberam de Rodrigues Alves a missão de sanear e civilizar o Rio de Janeiro. 

Até a próxima.

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Notas
(1) Sobre a sangria, Ana Carolina Viotti explica: 
O princípio da sangria era simples: se a doença é um desequilíbrio humoral, poder-se-ia restabelecer a harmonia entre as quatro grandes porções formadoras do corpo humano retirando-se o excesso de malignidade. Era preciso esvaziar o organismo do causador de sua desarmonia. Quando essa técnica era praticada por negros, cujas crenças ancestrais atribuíam o adoecimento aos maus espíritos, o tratamento era, também, uma forma de expulsar a malignidade estimulada pelos demônios.
Já a purga, segundo a mesma autora, era 
(...) outra terapêutica vulgarmente aplicada por experimentados e que por eles era receitada para toda sorte de moléstias, recebia, nas obras especializadas, diversas ressalvas para a sua utilização. Se na passagem pelo purgatório cristão todos os pecados eram colocados para fora, as purgas faziam o mesmo com o que afligia o corpo. Suas propriedades poderiam provocar duas reações: uma, também chamada “vomitório”, que lançava as imundices pelo alto; outra, que “depois de tomado começa a irritar e picar as fibras do intestino”, causava cólicas e eliminava os excrementos por baixo.
Curioso é perceber que as purgas não deveriam ser muito utilizadas em um momento e em um local no qual as disenterias eram frequentes causas de morte. No entanto, eram utilizadas de forma indiscriminada. 

(2) Em 29 de março de 1549, Salvador foi fundada oficialmente pelo primeiro governador-geral do Brasil, Tomé de Sousa. Passou a ser a capital oficial da colônia.

(3) A medida política de emancipar a colônia ocorreu por conta de um problema relativo ao incidente político que trouxe a realeza para o Brasil. Portugal precisava participar do Congresso de Viena (Áustria), pois lá iriam ser redefinidas as fronteiras que sofreram alterações com as guerras promovidas pelo francês Napoleão Bonaparte, que tentou dominar a região e ocupou boa parte dela durante algumas décadas, entre os séculos XVIII e XIX. 
Pois, para participar do Congresso, era preciso que os governos estivessem instalados em seu próprio território e o governo português estava exilado em uma de suas colônias. A solução foi emancipar o Brasil. Logo, não havia mais exílio e a participação no Congresso estava liberada. 

(4) Segundo Janaína Botelho, professora de História do Direito na Universidade Candido Mendes e autora de diversos livros sobre a história de Nova Friburgo, 
Os profissionais que praticavam a medicina no Brasil, no período colonial, dividiam-se em duas categorias: físicos e cirurgiões-barbeiros. Sendo poucos os profissionais habilitados para a vasta extensão territorial, praticavam igualmente a medicina os boticários, os barbeiros, os anatômicos, os algebristas, os curandeiros, os entendidos e os "curiosos”. Até o final do século XVIII, a racionalidade do saber médico pouco se distinguia do conhecimento empírico dos jesuítas, pajés, curandeiros, entendidos, etc. A prática curativa era essencialmente a mesma: sangria, purgativos, infusões com planas e pós, dietas, etc. 
(5) Até em outros campos, como no da imprensa, isso se fazia ver: antes da chegada da Família Real, não era permitido haver oficinas de impressão no Brasil. 

5 comentários:

  1. Gostaria de entender sobre o financiamento de saúde desde 1807 até Eloy Chaves 1820, existe alguma coisa que dê base?
    Apenas legislações atreladas aos acontecimentos!!!!

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  2. Como se pagava, impostos da época, valores entre outros que dão base para as legislações!!!

    Favor encaminhar email

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  3. Por que o controle sanitário era mínimo na chegada da família Real.E por que havia o predomínio de doenças transmissiveis?

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  4. Olá. Obrigada pelo conteudo. Como consigo acesso a referência bibliografica?

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  5. Olá qual autor desses destacou isso: No final do século XVIII, o Brasil colônia era assolado por muitas doenças infecto-contagiosas e epidemias, pois não se existia saneamento básico e política de saúde; 1779 vagava pelas ruas morféticos pedindo esmolas para sobrevivência. A Santa Casa não tinha condições de recolher estas vítimas de moléstias, o então Provedor e Governador Capitão General da Capitania Antônio Manoel de Mello e Castro Mendonça distribuía diariamente meio tostão aos leprosários. Além de fazer aprovar pela Mesa uma verba mensal de 1$600 para que os lázaros parassem de mendigar nas ruas pra se tratarem em casa.

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