terça-feira, 22 de março de 2016

O que é, afinal, essa tal saúde? (7)


“A Lição de Anatomia do Dr. Nicolaes Tulp”, de Rembrant

A noção mecânica de “Natureza” na Idade Moderna

Como já foi visto, na Idade Média predominava a lógica teocêntrica. Isso significa dizer que praticamente tudo o que acontecia era entendido como causado pela vontade divina, apenas por ela, e as ações humanas para prevenir e/ou curar males e doenças eram bastante limitadas a não ser as que consistiam em súplicas e orações, além da "magia" dos curandeiros, é claro.

Na Idade Moderna isso mudou.  O lugar da vontade divina foi ocupado pelas leis naturais, que traziam a vantagem de que poderiam ser não apenas conhecidas pela humanidade, mas, ainda, controladas, manipuladas e, em alguns casos, até mesmo modificadas, graças aos saberes acumulados pelo que tradicionalmente chamamos de “Ciência”. 
Houve a dessacralização do corpo e uma das consequências disso foi a liberação da dissecção de cadáveres e das práticas cirúrgicas. O corpo humano, que até então era intocável, pois feito à imagem e semelhança de Deus e, assim, inviolável para as ações humanas de pesquisa, passou a ser estudado como parte da natureza
O curioso é que, de certo modo, a noção de “Ciência” se estabeleceu como uma espécie de divindade que, para muitos, substitui até mesmo a Deus. Assim, na euforia científica que teve início naquele tempo, a Ciência se estabeleceu como um lampejo humano que se projeta para tarefas que antes eram atribuídas apenas a entidades sobrenaturais, desde a Antiguidade. 

A noção que se tinha na Era Moderna era que se estava libertando o homem, tornando-o o centro de tudo, lugar antes destinado a Deus. E a isso, se costuma chamar antropocentrismo.  

Determinismo natural substitui o divino
A Era Moderna parece ter inaugurado o tempo do antropocentrismo, ou seja, tudo passou a girar em torno do humano, do que é humano, de suas realizações e projetos. Pelo menos no que diz respeito a determinadas formas de proceder e, principalmente nas pesquisas de causas e nas práticas curativas, houve uma radical transformação.

Olhando aquela conjuntura histórica por um ângulo crítico, talvez se possa afirmar que o determinismo divino foi substituído pelo determinismo natural, com suas leis ocupando, em boa parte, o lugar da palavra de Deus. O homem, antes imagem e semelhança de Deus, foi substituído pelo homem máquina, ditado e comandado pela natureza, amarrado a um corpo autômato que sofre influências dela.

Mas, se por um ponto de vista parece ter havido apenas uma substituição de determinismos, é útil notar que, no caso do determinismo natural, o homem alcançava, a partir do estudo e observação da natureza, a perspectiva de controle sobre as forças que o controlam, criando teorias e técnicas para isso. No caso das leis divinas, isso não parecia tão viável ou mesmo possível.

Dominando e controlando a natureza
É possível pensar, porém, que ao mesmo tempo em que concebia leis rígidas e determinantes e as atribuía à natureza, o homem tornava-se, ao mesmo tempo, senhor e escravo delas. Por um lado, objeto das leis naturais, mas potencial senhor pela elaboração de teorias e técnicas para intervir sobre elas, dominando-as.

E a dominação das forças naturais, nessa ótica, é fundamental na medida em que a humanidade depende delas para sua sobrevivência, já que sofre as influências da natureza e precisa minimizar as consequências negativas dessas influências para ressaltar as positivas, aproveitando as forças naturais a seu favor. 

Conhecendo o interior da máquina humana
É importante perceber que houve, por tudo o que foi descrito acima, a dessacralização do corpo e uma das consequências disso foi a liberação da dissecção de cadáveres e das práticas cirúrgicas. Até um momento da história o corpo humano era intocável, pois feito à imagem e semelhança de Deus e, assim, inviolável para as ações humanas de pesquisa e cura. A partir da Era Moderna, quando a Ciência assume o lugar da divindade, isso muda de forma radical.

O corpo humano não mais funcionava de acordo com a lei divina, mas consoante às leis da natureza capturadas pelo saber humano. Para obter conhecimento e controle sobre essas leis, era preciso conhecer melhor como agiam dentro e fora do corpo, daí a necessidade imperiosa de, através da dissecção de cadáveres, conhecer com mais precisão como funcionava aquela máquina.

Sociologia e Psicologia também sofreram influências  
Cabe ainda registrar que a noção mecanicista não influenciou apenas a medicina e todas as ciências de estudo e intervenção na natureza, mas também os estudos acerca da sociedade, que foi entendida como uma máquina, ou como um organismo mecânico, durante boa parte da história recente e ainda é pensada assim por algumas vertentes da Sociologia. 

O mesmo aconteceu com o estudo da alma humana e se costuma considerar o surgimento da Psicologia quando deixou de ser um ramo filosófico para se instituir como ciência, já no século XIX, com Wihelm Maximilion Wundt, o criador do primeiro laboratório de psicologia, no ano de 1879.

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