A necessidade de descentralização da gestão, condição para que se promova a Equidade, levou ao empoderamento dos municípios como responsáveis pela Atenção Básica |
Observando a história da Saúde Pública no Brasil é possível
perceber que a centralização da gestão foi marcante até pouco tempo atrás.
Isso, se pensarmos bem, trazia inegáveis problemas para a saúde da população.
Basta pensar que um país com uma área de mais de oito milhões de metros
quadrados e com uma população que vive em situações e condições bastante
desiguais, tanto sociais, quanto econômicas e culturais, um comando único e
centralizado na área da Saúde Pública deixava de atender as demandas e necessidades
peculiares e particulares da população de cada região.
Havia, assim, um problema de equidade, ou seja, os desiguais
eram tratados de forma igual, o que acarretava que os mais necessitados
acabavam tendo menos atenção do que os mais abastados. Isso ficava claro no
modelo previdenciário vigente durante a chamada ditadura militar que perdurou
por 21 anos (1964/1985).
Antes do golpe de 1964, no ano de 1963, aconteceu a 3ª
Conferência Nacional de Saúde e o tema da Municipalização da Assistência foi
central nas discussões. Procurava-se, já naquele tempo, a integração dentre as
esferas de governo (federal, estadual e municipal) para elevar a qualidade e
abranger a assistência à saúde, adequando-a às particularidades regionais.
Tempos de cidadãos de
segunda classe
Basta olhar rapidamente os números e estatísticas da época
para perceber que no INAMPS (Instituto Nacional de Assistência Médica da
Previdência Social), criado em 1977 e extinto em 1993, os recursos para a
assistência eram alocados de acordo com a arrecadação previdenciária de cada
localidade. Assim, onde se arrecadava mais havia melhor assistência e os
grandes centros urbanos das regiões Sudeste e do Sul tinham melhores recursos
para oferecer atendimento do que as outras cidades.
Isso porque somente os trabalhadores com registro formal, ou
seja, com carteira profissional assinada por um empregador, é que tinham
direito à assistência de saúde no INAMPS. Os que não tinham, estavam entregues
à sorte, caso não pudessem ou não quisessem pagar os altos custos de um
tratamento de saúde na rede privada. Tinham que procurar os hospitais dos
estados e/ou municípios e nem sempre havia um por perto. Quando havia, era
preciso sorte para conseguir atendimento e muita sorte para obter um
atendimento integral e com qualidade. Outra opção eram as Santas Casas e demais
hospitais filantrópicos.
Na prática, o Estado brasileiro, em todos os seus níveis,
estava transmitindo a seguinte mensagem: em se tratando de assistência à saúde,
há os cidadãos de primeira classe, os empregados com registro profissional
formal, e os de segunda, os que não tinham “carteira assinada”. O Movimento da Reforma Sanitária Brasileira
(MRSB) queria mudar essa realidade com suas propostas de mudança que acabaram
por gerar o SUS.
Outro aspecto importante a ser considerado é que a
assistência oferecida era unicamente apropriada para casos de anterior adoecimento,
isto é, quando a pessoa já se encontrava doente e se restringia
predominantemente ao atendimento médico, seja em consulta em consultório (usualmente
em um ambulatório) ou em enfermaria.
Quatro problemas básicos
do modelo anterior ao SUS
Foram listados, até aqui, quatro tópicos importantes da
assistência à saúde no período pré-SUS, que indicam problemas a ser resolvidos:
1. a centralização da gestão, que afastava o gestor da realidade da população assistida;
2. a ausência de equidade na distribuição de recursos, priorizando áreas nobres, nas quais havia mais empregos e consequente maior arrecadação previdenciária, sem um planejamento pautado pela realidade epidemiológica das populações assistidas;
3. o oferecimento de assistência a apenas uma parte da população, aquela com registro formal de emprego, gerando uma divisão de classes de cidadãos, sendo os empregados “com carteira assinada” os de primeira classe e os trabalhadores informais os de segunda;
4. o foco da assistência estava apenas na atenção secundária e terciária, com uma ignorância quase absoluta ou mesmo absoluta em relação ao nível primário de atenção, que foca a promoção de saúde e a consequente prevenção do surgimento de doenças.
Pode não parecer, mas a diretriz da municipalização da
assistência é importante para o encaminhamento de resoluções para os quatro
problemas listados. Vejamos, abaixo.
Resolvendo os quatro problemas
com os recursos estratégicos dos municípios
1) A descentralização
da gestão
A municipalização é claramente uma iniciativa de
descentralização, aproximando a gestão da população assistida e proporcionando
que, por conta dessa aproximação, tenha um atendimento mais adequado às suas
necessidades peculiares e particulares, levando em consideração a realidade
epidemiológica em seus aspectos objetivos espaciais e temporais/sazonais, bem
como também subjetivos, como os relativos à cultura local. Além disso, o
financiamento pode ser melhor definido e aplicado.
2) Equidade na
distribuição de recursos
O Princípio da Equidade tem como lema fundamental “tratar
desigualmente os desiguais” e a gestão municipal é fundamental para a realização
desse Princípio Doutrinário. A assistência deixou de ser oferecida apenas a
quem tem emprego formal e abrangeu a todos, segundo outro Princípio Doutrinário
do SUS, a Universalidade.
Os municípios coordenam as ações de saúde tendo maior
consciência das necessidades e demandas da população e podendo, assim, investir
mais onde falta mais, cumprindo, desse modo, o Princípio da Equidade, tanto no
que diz respeito diretamente à assistência, quanto, é claro, ao financiamento,
com destinações de recursos precisas de acordo com o que é necessário para
atender a todos com equidade e de forma integral.
3) Universalidade
garantida
Ao contrário dos tempos do passado, quando havia duas
classes de cidadãos, o SUS oferece assistência indiscriminadamente, a quem dela
precisar. Com a municipalização, as prefeituras passaram a receber recursos do
Tesouro Nacional para financiar o atendimento de saúde à sua população ou, em
determinados casos, para providenciar o transporte de usuários do SUS para
localidades nas quais há assistência secundária ou terciária, conforme a
necessidade. A atenção primária deve ser ofertada, é claro, pelo próprio
município e, com tudo isso, a universalidade deve ser algo garantido, o
cumprimento de um direito básico do cidadão.
Alguns dos "Fatores Determinantes e Condicionantes da Saúde" |
4) Foco na Atenção
Primária
Chamamos Atenção Primária à Saúde (APS) às ações que
envolvem a promoção, a prevenção e a proteção à saúde e são realizadas
primordialmente pelos municípios. Essas ações não devem levar em consideração
apenas e unicamente fatores ligados à medicalização, mas ser orientadas por uma
percepção abrangente acerca da realidade da população, grupo social ou
indivíduos. Conforme dito, cabe aos municípios o oferecimento da Atenção
Primária.
Há três tipos de ação na APS:
4.1. Ações de Promoção de Saúde:
Ocorrem em torno de programas educativos e de conscientização acerca de práticas e hábitos saudáveis e não saudáveis, como forma de balizar parâmetros de atitudes a ser tomadas para uma vida com maior qualidade e, certamente, com menos problemas relacionados à saúde. Os Agentes Comunitários de Saúde e o Programa Saúde da Família são centrais e fundamentais para as ações de Promoção de Saúde.
4.2. Ações de Prevenção de Doenças:
São observadas as condições de vida de um determinado grupo populacional para diminuir e eliminar problemas decorrentes de problemas relativos a questões sanitárias e/ou epidemiológicas, prevenindo, dessa forma, o aparecimento de doenças. A vacinação é um clássico e importante recurso de prevenção, bem como o combate aos focos de mosquitos, como o aedes aegypti.
4.3. Ações de Proteção à Saúde:Os municípios são, pelo exposto, fundamentais na Promoção, Prevenção e Proteção à Saúde. No âmbito do SUS é a eles que cabem as mais importantes funções na Saúde Pública.
Para se proteger a saúde elaboram-se ações para detectar e conhecer os fatores determinantes e condicionantes da saúde em determinado ambiente. Ao se intervir diretamente sobre esses fatores, espera-se que haja maior proteção para a saúde da população, grupos e/ou indivíduos. A Proteção inclui a Promoção, ou seja, o incentivo a hábitos saudáveis, e a Prevenção, isto é, a diminuição e/ou eliminação de fatores de insalubridade ou tendências patogênicas no ambiente e no organismo.
Para outros dados sobre os níveis de Atenção, além da
Primária, leia as informações abaixo.
Os níveis Secundário
e Terciário de Atenção à Saúde
Há, além da Atenção Primária à Saúde (APS), outros tipos de
Atenção, classificados como Secundário e Terciário. São eles:
a) Atenção Secundária
à Saúde (ASS)
Ocorre quando há um agravo à saúde e pode ser definida,
embora não em todos os casos, como uma ação que indica que ou não houve uma APS
adequada, ou seja, que não houve a promoção de hábitos saudáveis, de uma forma
de vida saudável. A ASS é prestada por redes de unidades especializadas (ambulatórios
ou hospitais, conforme o caso) e deve ter planejamento regionalizado, o que
indica que deve ser de gestão dos estados, que dividem os seus territórios em
microrregiões. Cada microrregião deve contar com recursos que garantam a integralidade,
ou seja, unidades hospitalares com especialidades básicas, como pediatria,
clínica médica e obstetrícia, além de serviços de urgência e emergência, ambulatórios
eletivos para referência e assistência aos pacientes internados que demandam
predominantemente procedimentos de média complexidade.
b) Atenção Terciária
à Saúde (ATS)
Aqui entra a alta complexidade, isto é, a assistência que
requer a utilização de recursos de tecnologia mais elaborada e avançada. Pode
indicar que a APS e a ASS não surtiram resultados ou inexistiram, embora isso não
seja válido em todo e qualquer caso. O usuário do SUS que requer ações nesse
nível é usualmente vítima de algum mal grave. Como no caso da ASS, a doença já
se encontra instalada e, por conta de sua gravidade, demanda recursos de alta complexidade.
A ATS costuma ser de gestão estadual ou, principalmente, federal, como no caso
do Rio de Janeiro, que conta com alguns hospitais especializados que contam com
recursos tecnológicos avançados.
Durante o tempo da ditadura militar (que foi predominantemente
financiada por grandes empresários e não teve a conotação de moralização que
seu discurso indicava) a ATS foi priorizada e houve grandes repasses à
iniciativa privada para que hospitais não públicos fossem equipados com alta
tecnologia.
Tanto no caso da ASS como no da ATS, a priorização de ações nesses
dois níveis por parte do Estado indica que não há um “Sistema Público de Saúde”,
mas um sistema de doenças, isto é, que as promove ao invés de fazer isso com a
saúde. Cabe pensar, nesse sentido, que enquanto atividade comercial, a APS não
é nem de longe tão lucrativa quanto as atenções Secundária e Terciária.
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Ponderação importante
É preciso dizer que por mais que se possa criticar, com boas
razões, o SUS, por mais que se possa pensar que muitas de suas propostas não
avançaram o suficiente durante seus 25 anos de existência, hoje, exatamente
pela institucionalização do SUS e pela sua estrutura, há mais chances de resolver
os problemas existentes do que antes.
Além do mais, a injustiça estava inscrita
institucionalmente no período pré-Sus, sem Universalidade, Equidade ou Integralidade.
Somente o fato desses conceitos se constituírem em Princípios Doutrinários do
Sistema já representa um grande avanço, uma grande esperança no sentido de uma
realidade com mais saúde e menos injustiças.
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