Conrado Hübner Mendes 20/04/2018
Aproveitando-se desse círculo vicioso, o setor privado articula hoje suas forças políticas para dar novo salto e ganhar autorização para oferecer os “planos populares”
Aproveitando-se desse círculo vicioso, o setor privado articula hoje suas forças políticas para dar novo salto e ganhar autorização para oferecer os “planos populares”
Há muitas formas de trair a Constituição. Uma delas é forçar
o texto a dizer algo diverso do que diz. Juristas às vezes recorrem a
interpretações excêntricas para dar verniz técnico a posições avessas ao texto.
A segurança pública e o combate à impunidade, por exemplo, têm sido há muito
defendidos como fins soberanos que, em nome de um Brasil melhor, justificam a
supressão de liberdades civis. Outra forma de infidelidade constitucional é
presumir que a norma mira futuro distante. Enquanto não chegamos lá, aplicam-se
no presente padrões normativos esvaziados, sem explicar como defini-los ou
quando aquele futuro começa. O direito à moradia está nessa fila de espera,
entre tantos outros.
A traição mais refinada, contudo, não vem da arte do
jurista, mas do engenho contábil. Essa técnica abraça a retórica generosa do
texto constitucional, mas inviabiliza sua realização por meio de ardil
orçamentário, que esconde conflitos distributivos e beneficia o topo da
pirâmide. Em política social, o diabo mora nas finanças, não só na sutileza
jurídica.
Ricardo Barros, ministro da Saúde até o mês passado: entre “andar a pé” (como se referiu ao SUS) e “andar de Mercedes” (os planos privados), os cidadãos deveriam ter a opção intermediária de pagar por um plano barato em troca de serviços baratos (uma espécie de fusquinha, para adaptar a infeliz metáfora).
O direito à saúde sempre foi vítima dessa manobra. O
movimento sanitarista obteve retumbante conquista na Constituição de 1988 e
emplacou política pública de saúde gratuita e universal por meio de um sistema
único. O SUS tornou-se a espinha dorsal do projeto igualitário brasileiro.
Entre um modelo de direitos sociais voltados para pobres, com o estigma e a
precariedade embutidos, e um modelo de direitos sociais universais, a ser
usufruído por todos, o SUS adotou o segundo. Nesse sistema, saúde não é bem de consumo
para quem pode pagar, cuja qualidade depende de quanto se paga, mas direito de
qualquer cidadão e dever do Estado. Consagrou-se uma concepção arrojada de
justiça social.
A Constituição permitiu que a iniciativa privada prestasse
assistência à saúde de forma complementar ao SUS (Art. 199). A partir daí, a
política estatal optou por oferecer, de um lado, vultosos incentivos ao setor
privado de hospitais e planos de saúde por meio de renúncia fiscal; de outro,
por submeter o SUS a crônico subfinanciamento, que impede maior efetividade ao
direito à saúde. O Estado retirou recursos do SUS para subsidiar o mercado,
estabeleceu uma perversa relação entre o público e o privado e construiu
eficiente engrenagem de concentração de renda. Boicotou a inspiração igualitária
do SUS e se fez “Robin Hood ao contrário”, como se costuma dizer.
Hoje, 75% da população brasileira depende exclusivamente do
SUS, que recebe pouco mais de 40% do que se gasta com saúde no país; os outros
25% da população se beneficia do “bolsa saúde” para contratar um plano privado.
Deixa-se de arrecadar aproximadamente R$ 30 bilhões, o que ao mesmo tempo ajuda
a corroer o SUS e a viabilizar amplo mercado.
Esse arranjo regressivo ainda faz consolidar o discurso de
que o SUS é caro, ineficiente e merece ser “desafogado” pelo setor privado,
senso comum que justifica crescente mercantilização da saúde.
Aproveitando-se desse círculo vicioso, o setor privado
articula hoje suas forças políticas para dar novo salto e ganhar autorização
para oferecer os “planos populares”. Nas palavras de Ricardo Barros, ministro
da Saúde até o mês passado, entre “andar a pé” (como se referiu ao SUS) e
“andar de Mercedes” (os planos privados), os cidadãos deveriam ter a opção
intermediária de pagar por um plano barato em troca de serviços baratos (uma
espécie de fusquinha, para adaptar a infeliz metáfora).
Esse movimento não é surpreendente e tem coerência com a
trajetória de desnaturação disfarçada do SUS. É sintomático que o próprio
ministro não se expresse no idioma do direito universal à saúde. A conversão
definitiva do SUS em política para pobre, e da saúde em bem de consumo, não é
mero rearranjo econômico-financeiro, mas mudança de código moral. Precisamos de
clareza quanto ao caráter e à magnitude da mudança: sem um sistema universal de
saúde, a proposta liberal de igualdade de oportunidades, da qual depende a
liberdade, torna-se uma fraude. Virar essa chave representa o fim de um projeto
constitucional.
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A proposta infeliz do ministro Ricardo Barros
O Estado de S.Paulo - 2016
A proposta do ministro da Saúde, Ricardo Barros, para a criação de planos de saúde mais baratos, feita durante audiência pública no Senado na última quarta-feira, reforça a dúvida – levantada desde o anúncio de sua escolha – sobre a sua real capacidade para bem gerir um dos setores mais importantes da administração federal. Embora Barros tenha se limitado a adiantar tão somente as linhas gerais da proposta, especialistas na questão reagiram prontamente e em termos duros.
Aqueles planos, com cobertura obrigatória menor – e por isso mesmo mais em conta –, atrairiam um grande número de pessoas, o que diminuiria a procura pelos serviços do Sistema Único de Saúde (SUS). Por um lado, isso aliviaria as dificuldades financeiras do SUS e, por outro, como diz Barros, “renderia mais conforto para a população que quer um plano de saúde e não pode arcar com os custos”. O plano capaz de operar essa mágica ainda vai ser elaborado por técnicos do Ministério da Saúde. Sua implementação, porém, dependerá do que pensa a respeito a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), à qual cabe a regulamentação dos planos de saúde.
Com atendimento limitado por planos baratos, os que a eles aderirem vão ter, evidentemente, de continuar recorrendo ao SUS, sendo por isso uma ilusão imaginar que tais planos ajudarão a desafogar a rede pública
Segundo o ministro, não existe ainda uma estimativa do número de pessoas que poderiam aderir aos planos atraídas pelo seu menor custo. Ele não soube explicar também se a proposta abrange os planos empresariais e individuais ou apenas um desses segmentos. Em resumo, Barros e seus assessores têm uma ideia muito vaga do que desejam, o que é incompatível com a importância do que está em jogo. É preciso bem mais que isso – como os estudos preliminares que existem exatamente para esse fim – para que tal proposta possa ser considerada seriamente.
Nada disso impediu o ministro de pontificar sobre um assunto que, está se vendo, domina mal. Depois de argumentar que os planos mais baratos ajudariam a reduzir a pressão sobre o sistema público de saúde, Barros afirmou: “Eu trabalho com a realidade que temos no Brasil. O orçamento é finito. Não há recursos ilimitados”.
Ninguém, é claro, nega essas obviedades. Como também a outra que enunciou: não é o momento de lutar por mais recursos públicos para a saúde, tendo em vista a crise, mas tentar tirar o máximo do que se tem.
Há muito mesmo a se fazer para aplicar melhor os recursos do SUS, como é público e notório, e há muito tempo. Mas isso, a rigor, nada tem a ver com a proposta do ministro, que, em vez de resolver os atuais, pode criar outros e sérios problemas na área da saúde, como se depreende das críticas feitas a ela por especialistas.
A advogada Renata Vilhena, especializada em saúde suplementar, por exemplo, afirma que, com atendimento limitado por planos baratos, os que a eles aderirem vão ter, evidentemente, de continuar recorrendo ao SUS, sendo por isso uma ilusão imaginar que tais planos ajudarão a desafogar a rede pública.
Por sua vez, Lígia Bahia, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), chama a atenção para outro aspecto da maior importância: se a rede privada de médicos, laboratórios e hospitais já não dá conta de atender a contento à demanda atual dos planos, como é sabido, é fácil imaginar o que acontecerá com o significativo aumento dos clientes pretendido pelo ministro.
“Houve um aumento de usuários sem que a rede credenciada tivesse uma expansão proporcional. O resultado foi visto: longas filas de espera para marcar consultas, exames, cirurgias”, lembra ela.
É verdade: as empresas de saúde privada não investiram na expansão da rede, ao mesmo tempo que aumentavam o número de seus clientes, vendendo o que não podiam entregar, com a complacência dos governos do PT, que com isso se sentiram desobrigados de investir no SUS. Daí o enorme desequilíbrio entre demanda e oferta nesse setor.
O ministro Barros não sabe disso? Nem seus assessores? Ou alguém abre seus olhos a tempo ou essa desastrada proposta tem tudo para agravar ainda mais esse quadro.
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