sexta-feira, 27 de abril de 2018

SUS para pobre (e bolsa saúde para quem pode)


Conrado Hübner Mendes  20/04/2018  

Aproveitando-se desse círculo vicioso, o setor privado articula hoje suas forças políticas para dar novo salto e ganhar autorização para oferecer os “planos populares”

Há muitas formas de trair a Constituição. Uma delas é forçar o texto a dizer algo diverso do que diz. Juristas às vezes recorrem a interpretações excêntricas para dar verniz técnico a posições avessas ao texto. A segurança pública e o combate à impunidade, por exemplo, têm sido há muito defendidos como fins soberanos que, em nome de um Brasil melhor, justificam a supressão de liberdades civis. Outra forma de infidelidade constitucional é presumir que a norma mira futuro distante. Enquanto não chegamos lá, aplicam-se no presente padrões normativos esvaziados, sem explicar como defini-los ou quando aquele futuro começa. O direito à moradia está nessa fila de espera, entre tantos outros.

A traição mais refinada, contudo, não vem da arte do jurista, mas do engenho contábil. Essa técnica abraça a retórica generosa do texto constitucional, mas inviabiliza sua realização por meio de ardil orçamentário, que esconde conflitos distributivos e beneficia o topo da pirâmide. Em política social, o diabo mora nas finanças, não só na sutileza jurídica.
Ricardo Barros, ministro da Saúde até o mês passado: entre “andar a pé” (como se referiu ao SUS) e “andar de Mercedes” (os planos privados), os cidadãos deveriam ter a opção intermediária de pagar por um plano barato em troca de serviços baratos (uma espécie de fusquinha, para adaptar a infeliz metáfora).
O direito à saúde sempre foi vítima dessa manobra. O movimento sanitarista obteve retumbante conquista na Constituição de 1988 e emplacou política pública de saúde gratuita e universal por meio de um sistema único. O SUS tornou-se a espinha dorsal do projeto igualitário brasileiro. Entre um modelo de direitos sociais voltados para pobres, com o estigma e a precariedade embutidos, e um modelo de direitos sociais universais, a ser usufruído por todos, o SUS adotou o segundo. Nesse sistema, saúde não é bem de consumo para quem pode pagar, cuja qualidade depende de quanto se paga, mas direito de qualquer cidadão e dever do Estado. Consagrou-se uma concepção arrojada de justiça social.

A Constituição permitiu que a iniciativa privada prestasse assistência à saúde de forma complementar ao SUS (Art. 199). A partir daí, a política estatal optou por oferecer, de um lado, vultosos incentivos ao setor privado de hospitais e planos de saúde por meio de renúncia fiscal; de outro, por submeter o SUS a crônico subfinanciamento, que impede maior efetividade ao direito à saúde. O Estado retirou recursos do SUS para subsidiar o mercado, estabeleceu uma perversa relação entre o público e o privado e construiu eficiente engrenagem de concentração de renda. Boicotou a inspiração igualitária do SUS e se fez “Robin Hood ao contrário”, como se costuma dizer.

Hoje, 75% da população brasileira depende exclusivamente do SUS, que recebe pouco mais de 40% do que se gasta com saúde no país; os outros 25% da população se beneficia do “bolsa saúde” para contratar um plano privado. Deixa-se de arrecadar aproximadamente R$ 30 bilhões, o que ao mesmo tempo ajuda a corroer o SUS e a viabilizar amplo mercado.

Esse arranjo regressivo ainda faz consolidar o discurso de que o SUS é caro, ineficiente e merece ser “desafogado” pelo setor privado, senso comum que justifica crescente mercantilização da saúde.

Aproveitando-se desse círculo vicioso, o setor privado articula hoje suas forças políticas para dar novo salto e ganhar autorização para oferecer os “planos populares”. Nas palavras de Ricardo Barros, ministro da Saúde até o mês passado, entre “andar a pé” (como se referiu ao SUS) e “andar de Mercedes” (os planos privados), os cidadãos deveriam ter a opção intermediária de pagar por um plano barato em troca de serviços baratos (uma espécie de fusquinha, para adaptar a infeliz metáfora).

Esse movimento não é surpreendente e tem coerência com a trajetória de desnaturação disfarçada do SUS. É sintomático que o próprio ministro não se expresse no idioma do direito universal à saúde. A conversão definitiva do SUS em política para pobre, e da saúde em bem de consumo, não é mero rearranjo econômico-financeiro, mas mudança de código moral. Precisamos de clareza quanto ao caráter e à magnitude da mudança: sem um sistema universal de saúde, a proposta liberal de igualdade de oportunidades, da qual depende a liberdade, torna-se uma fraude. Virar essa chave representa o fim de um projeto constitucional.


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A proposta infeliz do ministro Ricardo Barros 
O Estado de S.Paulo - 2016

A proposta do ministro da Saúde, Ricardo Barros, para a criação de planos de saúde mais baratos, feita durante audiência pública no Senado na última quarta-feira, reforça a dúvida – levantada desde o anúncio de sua escolha – sobre a sua real capacidade para bem gerir um dos setores mais importantes da administração federal. Embora Barros tenha se limitado a adiantar tão somente as linhas gerais da proposta, especialistas na questão reagiram prontamente e em termos duros.

Aqueles planos, com cobertura obrigatória menor – e por isso mesmo mais em conta –, atrairiam um grande número de pessoas, o que diminuiria a procura pelos serviços do Sistema Único de Saúde (SUS). Por um lado, isso aliviaria as dificuldades financeiras do SUS e, por outro, como diz Barros, “renderia mais conforto para a população que quer um plano de saúde e não pode arcar com os custos”. O plano capaz de operar essa mágica ainda vai ser elaborado por técnicos do Ministério da Saúde. Sua implementação, porém, dependerá do que pensa a respeito a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), à qual cabe a regulamentação dos planos de saúde.
Com atendimento limitado por planos baratos, os que a eles aderirem vão ter, evidentemente, de continuar recorrendo ao SUS, sendo por isso uma ilusão imaginar que tais planos ajudarão a desafogar a rede pública
Segundo o ministro, não existe ainda uma estimativa do número de pessoas que poderiam aderir aos planos atraídas pelo seu menor custo. Ele não soube explicar também se a proposta abrange os planos empresariais e individuais ou apenas um desses segmentos. Em resumo, Barros e seus assessores têm uma ideia muito vaga do que desejam, o que é incompatível com a importância do que está em jogo. É preciso bem mais que isso – como os estudos preliminares que existem exatamente para esse fim – para que tal proposta possa ser considerada seriamente.

Nada disso impediu o ministro de pontificar sobre um assunto que, está se vendo, domina mal. Depois de argumentar que os planos mais baratos ajudariam a reduzir a pressão sobre o sistema público de saúde, Barros afirmou: “Eu trabalho com a realidade que temos no Brasil. O orçamento é finito. Não há recursos ilimitados”.

Ninguém, é claro, nega essas obviedades. Como também a outra que enunciou: não é o momento de lutar por mais recursos públicos para a saúde, tendo em vista a crise, mas tentar tirar o máximo do que se tem.

Há muito mesmo a se fazer para aplicar melhor os recursos do SUS, como é público e notório, e há muito tempo. Mas isso, a rigor, nada tem a ver com a proposta do ministro, que, em vez de resolver os atuais, pode criar outros e sérios problemas na área da saúde, como se depreende das críticas feitas a ela por especialistas.

A advogada Renata Vilhena, especializada em saúde suplementar, por exemplo, afirma que, com atendimento limitado por planos baratos, os que a eles aderirem vão ter, evidentemente, de continuar recorrendo ao SUS, sendo por isso uma ilusão imaginar que tais planos ajudarão a desafogar a rede pública.

Por sua vez, Lígia Bahia, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), chama a atenção para outro aspecto da maior importância: se a rede privada de médicos, laboratórios e hospitais já não dá conta de atender a contento à demanda atual dos planos, como é sabido, é fácil imaginar o que acontecerá com o significativo aumento dos clientes pretendido pelo ministro.

“Houve um aumento de usuários sem que a rede credenciada tivesse uma expansão proporcional. O resultado foi visto: longas filas de espera para marcar consultas, exames, cirurgias”, lembra ela.

É verdade: as empresas de saúde privada não investiram na expansão da rede, ao mesmo tempo que aumentavam o número de seus clientes, vendendo o que não podiam entregar, com a complacência dos governos do PT, que com isso se sentiram desobrigados de investir no SUS. Daí o enorme desequilíbrio entre demanda e oferta nesse setor.

O ministro Barros não sabe disso? Nem seus assessores? Ou alguém abre seus olhos a tempo ou essa desastrada proposta tem tudo para agravar ainda mais esse quadro.

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