domingo, 28 de janeiro de 2018

Sobre o modelo flexneriano da medicina científica

Abraham Flexner foi um educador que se especializou em ensino médico e escreveu, em 1910, um relatório que mudou o ensino da medicina nos EUA e, consequentemente, a prática médica. Subvencionado pela Fundação Rockfeller, Flexner entrou em ação para “pôr ordem” no suposto caos que caracterizava o ensino e a prática médica naquele país. E foi assim que, em 1912, assumiu importante e permanente posição no General Education Board.

O tal “caos” dizia respeito à proliferação das práticas médicas consideradas “não científicas”, como o fisiomedicalismo e o botanomedicalismo, terapêuticas que viriam a dar origem à fitoterapia e à homeopatia. Não havia a necessidade de concessão do Estado para ensinar ou exercer a medicina e, além das terapêuticas referidas, tudo o mais era permitido, o que, sem dúvida, representava um risco para a população, por conta da absoluta ausência de regulação. É preciso, porém, saber que a proposta flexneriana acabou por dar um prestimoso auxílio à indústria farmacêutica, que desde o final do século XIX, começava a construir o seu império e a influenciar decisivamente a lógica da assistência à saúde, impondo a “medicina científica” como padrão.

Tudo indica que, naquele momento, a população dos Estados Unidos da América se livrou dos supostos curandeiros e charlatães, mas caiu nas garras da indústria de fármacos. E, afinal, não se pode dizer que a fitoterapia e a homeopatia sejam terapêuticas de charlatães, como pretendia Flexner, seus patrocinadores e a sua turma de discípulos. Hoje, inclusive, estão incluídas no SUS e boa parte da população as considera eficazes e efetivas.

Trata-se de um modelo de assistência à saúde para poucos, já que os recursos de média e alta complexidade encontram-se usualmente em grandes centros urbanos e também por conta de seus custos. E, quem sabe, para ninguém, pois, como será brevemente exposto adiante, não é o doente o assistido. 


Abraham Flexner
Doença para todos
Com Flexner, a medicina alopática (muitos preferem dizer “científica”, já que o termo alopatia foi criado por Christian Friedrich Samuel Hahnemann, pai da homeopatia) se impôs, favorecendo os tratamentos com base na cura de sintomas, com intenso uso de medicamentos industrializados, e a prática médica se alinhou decisivamente à indústria. Assim, a utilização indiscriminada de medicamentos industrializados, bem como a adoção de procedimentos médicos de média e alta complexidade tecnológica, passaram a predominar. Os custos altos dos tratamentos significavam lucro para a indústria e, como já mencionado, estava acessível a poucos. No fim das contas, a medicina científica se estabelecia como uma estratégia de lucratividade no combate ao mal instalado, nunca de promoção de saúde.

Há que se pensar que o cidadão e a cidadã, quando saudáveis, não são tão lucrativos como quando adoecem frequentemente. E os médicos, graças à proposta de Flexner, passaram a ser doutrinados para lidar com pedaços de um corpo biológico, peças de corpos-máquinas, absolutamente desvinculados de qualquer vínculo humano, o que, cá para nós, é uma prática muito profícua para o desenvolvimento de males diversos.

O hospital era, então, o grande centro de saúde onde, no entanto, havia tudo, menos saúde. A manutenção desses centros de doenças exigia (e ainda exige) muitos recursos, já que o atendimento é oferecido a pessoas nas quais a doença já se instalou e precisa ser tratada com recursos técnicos e tecnológicos que envolvem a compra e a manutenção de equipamentos sofisticados, bem como diversos profissionais para operá-los e lhes dar suporte técnico, fora toda a equipe de saúde envolvida.

O modelo flexneriano parece, assim, uma prática iatrogênica, ou seja, o que oferece é a doença como centro. Foca seu interesse no estudo do adoecimento e somente com relação ao seu conceito de doença entende e define a saúde. Nessa ótica, saúde é a ausência de doenças.

Corpos segmentados
Como já dito anteriormente, o sistema de saúde flexneriano é voltado para corpos segmentados. Surgem, a partir daí, os especialistas, aqueles médicos que tratam cada órgão em particular e que parecem ignorar que há um conjunto que articula o bom ou mau funcionamento desses órgãos e que esse conjunto está integrado em uma pessoa, um ente humano, que tem uma história e uma subjetividade determinante no processo de adoecimento. Em suma, não há, na dita medicina flexneriana, a científica, qualquer percepção de que o adoecimento é da pessoa, não de seu órgão em particular.

Há, no modelo de Flexner, uma unicausalidade mística, como se um elemento agressor houvesse agido sobre o corpo quase que de forma isolada, sem qualquer participação da pessoa que adoece, como se a vida real nada significasse, apenas o jogo invisível dos bacilos, vírus e bactérias. Dispensa-se total atenção à manifestação patológica e se deixa de perceber que por trás dos sintomas e síndromes está uma pessoa que adoece de uma determinada forma e que nenhum adoecimento é igual. Ao agir assim, diminui a possiblidade dessa pessoa criar hábitos que evitarão o adoecimento e/ou promoverão saúde. Nesses casos, no máximo depois da doença instalada, ou quando já há risco iminente de adoecimento, é que se recomenda ou receita uma dieta ou qualquer outro procedimento salubre.

Atendimento à doença, conforme descrita nosologicamente
Não se entende, nesse modelo da medicina “científica”, que a pessoa precisa ser tratada integralmente para combater efetivamente a doença e que a doença não pode se confundir com suas manifestações, pois quando um órgão adoece, isso significa que é a pessoa que está doente e é ela que necessita de atenção, uma atenção integral, não simplesmente delimitada ao órgão doente.

Usualmente, a doença se instala de acordo com a forma de vida que a pessoa acometida pela doença leva. Assim, cada adoecimento é singular, o que não significa que não haja semelhanças entre um doente e outro e que um conjunto de sintomas pode, com certeza, informar sobre uma determinada forma de adoecer, resultante da ação de determinado agente patogênico.


Há médicos que, por incrível que possa parecer, não entendem que há uma pessoa que adoece por trás dos sintomas. Isso acontece por conta de sua formação (aquela proposta por Flexner nos EUA), e combatem a doença que está nos livros, nos tratados médicos, do jeito que ali está, não exatamente como se manifesta nas pessoas, singularmente em cada uma. O doente, nesse caso, fica esquecido e, não raro, condenado a sofrer com as reincidências de seus males. Se o médico apenas combate a doença como abstração, não atende ao doente, que é a manifestação concreta e objetiva dela. 

7 comentários:

  1. Simplesmente a síntese da saúde nos atendimentos de Planos de Saúde.
    O bom é que temos o SUS!

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  2. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2010001200003

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  3. Mesmo sendo na UBS o atendimento do clínico geral que atende pelo SUS deveria ter mais qualidade, embora a gente sabe que os médicos não tem muita liberdade de escolha.

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  4. Muito bom o artigo! Seria muito importante se os médicos observassem essa lógica mesmo, com certeza teríamos um plano de saúde mais eficiente e promissor.

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