quarta-feira, 23 de setembro de 2015

Fernanda Canofe, do Sul 21: "Como funciona a primeira universidade de medicina do Mais Médicos dois anos depois de sua criação"

Por Fernanda Canofre, do Sul 21 - 14/09/2015

Herberton desembarcou no norte gaúcho em 2013 como um dos 40 alunos da primeira turma de Medicina na Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), em Passo Fundo.

Desde que era criança, nas ruas da pequena Ladainha, em Minas Gerais, Herberton Carlos Pacheco sonhava em ser médico. Na cidade de pouco mais de 16 mil habitantes, localizada na região nordeste do estado, uma das mais pobres, médicos não eram comuns no dia a dia da população. Ser um então, menos ainda. Herberton acabou se formando em Farmácia, mas nunca desistiu da Medicina. Ele tentou vestibular em universidades de São Paulo, Bahia, Minas, mas sem sucesso. Até que, há dois anos, acabou parando em uma cidade da qual nunca havia ouvido falar na vida: Passo Fundo. “Eu nem sabia que essa cidade era no Rio Grande do Sul”, diz rindo. 

Herberton desembarcou no norte gaúcho em 2013 como um dos 40 alunos da primeira turma de Medicina na Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), em Passo Fundo. O campus aberto na cidade se tornou a primeira universidade de Medicina do país criada dentro da política de expansão de vagas nos cursos de saúde prevista no programa Mais Médicos. Na UFFS, a única forma de ingresso é através de notas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), com o Sistema de Seleção Unificada (Sisu). Todas as vagas são reservadas a alunos egressos do Ensino Médio de escolas públicas, com uma porcentagem em torno de 16% para candidatos cotistas, autodeclarados negros, pardos ou indígenas, além de vagas reservadas a estudantes em transferência. Enquanto a sede oficial não fica pronta, temporariamente, a universidade funciona em um espaço nos fundos do Seminário Nossa Senhora Aparecida.
“Tem um diferencial muito importante que é se preocupar com a pessoa. Quem faz medicina não pode ser de outra maneira. Se você não se preocupa com o cuidado de pessoas, está na profissão errada. O salário é consequência” 
Alguns fatores foram chave para trazer o campus da universidade federal à cidade de 200 mil habitantes, que já possuía duas faculdades particulares de medicina. Logo de cara o Mineiro, como Heberton é chamado pelos colegas, percebeu que estava longe de casa. “A região de onde eu venho é muito diferente daqui em todos os aspectos: socialmente, economicamente, culturalmente. Em termos de educação, saúde, renda, lazer, totalmente diferente. É outra realidade”, conta ele. Com dois grandes hospitais de referência – Hospital da Cidade e São Vicente de Paula – Passo Fundo é conhecida como um pólo de saúde para todo norte do Rio Grande do Sul. Além disso, a cidade está localizada em uma região onde há comunidades indígenas e quilombolas, assentamentos sem-terra e um número significativo de famílias vivem em zonas rurais. Todos públicos priorizados pelo Mais Médicos.

“Por mais que Passo Fundo já tivesse todo um centro de excelência de formação de saúde, com modelo hospitalocêntrico, se a gente for ver toda a região em termos de atenção básica, unidade básica de saúde, programas de estratégia de saúde para família ela é muito deficitária”, explica o Dr. Rafael Kraemer, coordenador acadêmico e professor da UFFS. “Ela acaba não tendo a inserção que deveria ter para dar suporte para as cidadezinhas. O que é um paradoxo de formação de saúde hoje até mundial”. Enquanto a sede oficial não fica pronta, temporariamente, a universidade funciona em um espaço nos fundos do Seminário Nossa Senhora Aparecida.

Quando o programa Mais Médicos – que oferece bolsas para médicos atenderem em unidades de saúde e atenção básica – foi criado, sua primeira ação foi levar médicos a periferias e para regiões do interior carentes de profissionais. A ideia era descentralizar a a prática da medicina no país, mas também a formação dos médicos, cada vez mais apoiada no modelo centralizado em hospitais. Isso inclui também romper com a dependência de hospitais e voltar ao modelo de quando médicos eram próximos da realidade de seus pacientes. “Hoje, a formação em saúde de um modo geral tem criado um descolamento daquilo que é real e daquilo que é produzido e relatado dentro de um consultório”, afirma Kraemer.

Para atender as comunidades carentes de serviços médicos da região, desde o início do curso os alunos participam de atividades de imersão, entrando em contato com pacientes e observando trabalho de profissionais. Atualmente, a UFFS tem acordo com 15 municípios da região para realizar trabalhos em conjunto com a rede médica de cada um. A cada semestre, os alunos atendem um comunidade e desenvolvem um projeto específico para ela baseado na rotina de seus pacientes. O currículo do curso foi pensado desde o início com esse foco: preparar médicos antes de especialistas, que tenham experiência em saúde da família.
Arthur Chioro: “O Mais Médicos, a partir de hoje, se consolida não apenas como uma política de provimento e garantia na Atenção Básica. É uma política estruturante da formação médica do País” 
“Estudamos muito currículos. Revisamos até os currículos das escolas tradicionais, acabamos verificando vários estilos curriculares do país inteiro e criamos o modelo que coloca o aluno com inserção precoce na atenção básica”, explica o Dr. Júlio Stobbe, coordenador do curso da UFFS e vice-diretor médico do Hospital São Vicente de Paula (HSVP), sobre o início do curso. Além da ligação com a faculdade, Stobbe também é supervisor do programa Mais Médicos no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina. O currículo da UFFS já inclui as mudanças propostas nas novas diretrizes para os cursos de medicina do país, elaboradas em 2014. Elas preveem, por exemplo, estágio obrigatório em Unidades Básicas de Saúde, emergências e urgências, além de um tempo mínimo de carga horária de estágio no Sistema Único de Saúde (SUS).

Stobbe conta que, mesmo tendo se formado em um modelo hospitalocêntrico, a rotina de atendimentos em emergências o ensinou o quanto a atenção básica é importante para diminuir as filas nos hospitais. “Esse é um projeto que quem gosta de medicina e gosta de trabalhar com pessoas, e quer que as coisas se modifiquem para um lado de melhorias na saúde da população, não tem como não se apaixonar por isso”. Nascido na zona rural da região e com experiência de gestão no HSVP, ele também não é como qualquer médico.

A cada quinze dias, às 7h30, os alunos da turma do 5º nível se dividem em grupos de 7 pessoas, cada um rumo a um dos municípios conveniados com a universidade, acompanhados por professores. Entre os municípios está Sertão, localizado a cerca de 40 km de Passo Fundo. Até alguns anos atrás, a cidade ainda possuía em funcionamento o hospital onde a maioria de seus 6.225 habitantes nasceu. Hoje, porém, o local funciona apenas para internações psiquiátricas e tem alguns leitos para observação de pacientes que precisam de outros cuidados. Todo o atendimento médico acontece na Unidade Básica de Saúde, com três médicos disponíveis: dois médicos brasileiros – um deles atende há 35 anos na cidade, o outro se formou em Cuba e revalidou o diploma no Brasil – e uma médica cubana, participante do Mais Médicos.

Sentados em uma sala da UBS de Sertão, os alunos explicam que pretendem fazer um plano de atendimento e criar um grupo de atenção para a população de diabéticos e hipertensos da cidade. As necessidades do município foram traçadas depois de ouvirem também representantes da Secretaria Municipal de Saúde. Puxando livros de teóricos da atenção básica, durante todo o dia, eles tentam casar a teoria com a prática, ouvindo enfermeiras e médicos da unidade, coletando dados sobre a população e preparando o plano para os atendimentos que devem começar em 15 dias. Se os livros indicam dieta com frutos do mar e peixes, conhecendo a região onde estão inseridos, os alunos aprendem que a realidade também apresenta limitações. Inclusive com os medicamentos que são disponibilizados pelo estado e acessíveis aos pacientes. E que como médicos eles terão de equilibrar os dois lados.

Como professor supervisor da atividade, Dr. Júlio Stobbe, lembra dados nacionais que mostram que milhares de amputações de diabéticos poderiam ser evitadas se os médicos estivessem melhor preparados para a atenção básica. Segundo ele, enquanto mais de 90% dos diabéticos no país têm acesso a tratamento e medicação, apenas 30% recebe orientação adequada sobre alimentação, exercícios físicos ou realiza o chamado exame do pé diabético, que ajuda a acompanhar a evolução da doença. “Atividade física é mais do que 60% do tratamento. Por isso o país registra 140 mil amputações por ano. Cria um exército de mutilados, sem necessidade, por incompetência nossa”, diz ele aos alunos enquanto discutem o projeto.

Heberton, que pensa em ser cardiologista, conta que no início se sentia intimidado com o foco do curso na atenção básica. “Depois que você vai entendendo sobre saúde pública e sobre medicina, você vai percebendo que a proposta da UFFS é muito válida frente a demanda que a gente tem a nível de saúde pública nacional. É a área que mais carece [de médicos], é a atenção básica”, conta o estudante. “Muita gente acha que a atenção básica é voltada apenas para o postinho, para unidade básica de saúde. Na verdade, ela é um conceito que deve ser ampliado para todas as áreas”.

Os médicos e a comunidade
De maneira geral, mesmo em regiões que possuem faculdade de medicina, municípios de todo o Brasil sofrem para encontrar médicos. O alto número de vagas ociosas é também um indicativo de que estudantes que saem dos cursos hoje estão preparados para atuar com suporte de um hospital. Há ainda outros dois fatores que pesam: nem todos se sentem seguros de assumir a atenção básica; a maioria quer seguir alguma especialização e opta por ficar em grandes centros. Assim, muitos dos casos que poderiam ter sido solucionados nos postos de saúde, acabam lotando emergências e filas do SUS. “Está faltando algo na formação e não na tecnologia, como é muitas vezes comentado”, avalia Dr. Rafael Kraemer.
Júlio Stobbe (coordenador do curso da UFFS e vice-diretor médico do Hospital São Vicente de Paula) conta que, mesmo tendo se formado em um modelo hospitalocêntrico, a rotina de atendimentos em emergências o ensinou o quanto a atenção básica é importante para diminuir as filas nos hospitais 
Apesar da polêmica envolvendo a contratação de profissionais cubanos em 2013, quando o Mais Médicos foi lançado, dois anos depois a noção de proximidade com os pacientes trazida da escola de Cuba já começou a dar efeito aqui. “Acho que na maneira de criar vínculos com a comunidade. Eles se preocupam mais do que os outros com o paciente”, analisa Daiane Corso, enfermeira da UBS de Sertão.

Além do trabalho ao lado de dois profissionais formados com foco em saúde da família, Corso também viu a unidade onde trabalha mudar com a presença dos alunos da universidade federal. “A gente está percebendo coisas que a gente não parava para pensar, como avaliar a situação de saúde, avaliar os indicadores de saúde, os pacientes como um todo, que na rotina a gente acaba pecando pela demanda”.

Em sua primeira turma, a UFFS percebeu um perfil de alunos mais velhos, muitos deles de fora do estado e que começavam ali sua segunda graduação. Histórias muito parecidas com a de Catiano Plaquitken, de 36 anos. Casado com uma médica radiologista, mesmo formado em Engenharia Elétrica, ele chegou a prestar alguns vestibulares na Universidade de Passo Fundo para Medicina para ver como se sairia. O curso passa da média de 100 candidatos por vaga e sua mensalidade é de cerca de R$4.450. “Sempre foi um desejo, mas o fato de não ter uma escola pública aqui em Passo Fundo era um entrave”, explica ele.

Em Sertão, onde sua turma trabalha com atendimento a duas comunidades quilombolas, o diploma anterior e a proximidade do futuro médico com seus pacientes se somaram. Uma das comunidades estava com problema com a bomba da caixa d’água, o que obrigava um dos homens a ficar sempre em casa para cuidar do problema. Catiano solucionou o problema criando um sistema de boias e uma bomba que desligasse sozinha assim que a caixa enchesse. A prefeitura comprou os materiais e ele mesmo ajudou na instalação. “Pra ver que a gente não está preocupado só com a doença, mas sim com a saúde, prevenção e melhorar o meio onde as pessoas vivem”, diz o Dr. Stobbe ao lembrar da história.

Novas vagas e residências
Em julho deste ano, o Ministério da Educação anunciou a criação de mais 2.290 vagas em cursos de Medicina pelo país. As cidades contempladas não têm faculdade na área e não são capitais de estado, o que contribui para levar o ensino da medicina também para o interior. Durante o anúncio, o ministro da Saúde, Arthur Chioro, declarou: “O Mais Médicos, a partir de hoje, se consolida não apenas como uma política de provimento e garantia na Atenção Básica. É uma política estruturante da formação médica do País”. Três das faculdades a abrigarem essas novas vagas estão no Rio Grande do Sul, nos municípios de Erechim (55), Ijuí (50) e Novo Hamburgo (60).

A UFFS também ampliou seu número de alunos. Já no próximo semestre, a universidade passa a receber 62 alunos por ano, que serão divididos em duas turmas. A universidade anunciou também que vai assumir as bolsas de 26 residentes dos hospitais da cidade. A instituição deve se mudar até o final do ano para sua nova sede, no antigo quartel de Passo Fundo, no centro da cidade.

Nas turmas que ingressaram em 2014 e 2015, já houve mudança no perfil dos alunos. Se antes os alunos estavam em sua segunda graduação, agora a maioria deles é de recém-saídos do Ensino Médio, principalmente da região de Passo Fundo. Todos alunos que não teriam condições de desembolsar a mensalidade de uma universidade particular para seguir a vocação médica.

Acostumado a conviver com estudantes em estágios e residência nos corredores do hospital, Dr. Stobbe reconhece que na UFFS encontrou algo diferente. “Esse critério de inclusão de pessoas que tiveram mais dificuldade ao acesso é sem dúvida um diferencial importante”, avalia o médico. “Tem um diferencial muito importante que é se preocupar com a pessoa. Quem faz medicina não pode ser de outra maneira. Se você não se preocupa com o cuidado de pessoas, está na profissão errada. O salário é consequência”.


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